domingo, 21 de dezembro de 2008

Em setembro


Em Setembro, o nono mês, fui concebido. Em novembro, o décimo segundo mês, minha mãe tomou uma decisão: abortar-me. Ela morava no Mississipi, viu que me criar seria impossível, pois eu era filho de mãe branca e pai negro, fruto de um momento de fraqueza. Dos dois.

Meu pai era um pastor de uma igreja negra, solteiro e com inúmeras pretendentes, minha mãe filha do fazendeiro mais racista que se possa imaginar. O que aconteceu entre os dois foi fruto de um acaso tão improvável que quem ler vai achar que eu estou mentindo. Começou quando ela passou perto de uma batista negra quando estava numa viagem a passeio no Grand Canyon, com a escola. Ela não se interessou por aquele penhasco imenso e desinteressante, e fugiu com duas amigas pela cidadela mais próxima. As duas amigas, quando entraram na cidade, se deram conta: era dos negros. E isso, para garotas brancas do Mississipi de 1970 era mais assustador que um tornado junto a um terremoto junto a um tsunami. Começaram a imaginar as piores coisas que se podia imaginar, serem estupradas por negros loucos raivosos e animalescos, e saíram correndo. Duas delas. Minha mãe ficou. Não porque ela não tinha medo, porque ela tinha, e sim porque ela se hipnotizou por aquela música gospel vinda daquela igreja. Tão impressionada ela ficou que entrou ali, e quando notaram, todos pararam. Uma menina branca sozinha numa cidade de negros era assustador, era mais assustador que açoites, tortura, mais assustador que injustiça. Todos calados, a menina branca calada. O pastor fala, num tom calmo, cuidadoso: Posso saber o que fazes aqui? Ela não ouviu. Quando o pastor terminou a frase ela já tinha saído correndo, percorrendo o caminho de volta, ironicamente petrificada de medo. Só parou quando estava abraçada na sua professora, que nem se deu conta do sumiço delas. Voltando a Jackson, capital de Mississipi, minha mãe concluiu: Essa música deles. Se a sacra já é tão boa, nem posso imaginar a profana. Loja de disco nenhuma teria músicas desse povo, não do lado de cá, pensou ela. Então ela pensou na única pessoa negra com quem conversara de verdade, o faxineiro do seu colégio. –Mr Jackson, o senhor me dá um disco da música do seu povo por dez dólares? –Quer que eu perca meu emprego, moça? –É que a música é tão boa! Por sorte, ou azar, o senhor Jackson gostava tanto ou mais de música do que ela, e deu não conseguiu negar esse pedido.

Na outra manhã ela voltou pra casa com um disco gospel escondido na mochila. Música negra nenhuma tinha sido tocada naquela vitrola do pai dela. O primeiro acaso vem agora. Nunca, em toda vida da minha mãe, tinha chegado cedo em casa. Esse dia foi exceção. Ela apanhou, apanhou como se nunca tivesse apanhado. E ele mandou que ela fizesse a coisa mais assustadora que uma garota poderia fazer. Ir para o lado de lá e devolver o disco a seu dono. Claro que essa decisão não foi natural, e sim porque ele queria que sua filha saísse de casa, porque o motivo de sua vinda à tarde estava chegando, um negócio que o faria milionário. Minha mãe não foi sozinha, claro, foi com cinco empregados tão racistas quanto o meu pai. Cruzando a linha, foram a um bar local perguntar onde morava o tal faxineiro. Segundo acaso: Tinham acabado de descobrir que mataram três negros, e estavam furiosos atrás de brancos que pudessem ter feito isso. Os empregados fugiram correndo, com ódio e promessas de vinganças, de uma turma enfurecida, e se esqueceram da menina. Ela não quis fugir. Ficou, entrou numa igreja batista. Lá dentro estava o pastor, que tinha acabado de se perguntar o que teria que fazer para acabar com aquele ódio que permeava aquela sociedade. Ele notou a garota branca, ela sorriu e ofereceu o disco, ele se apaixonou. Ela também. Os motivos que os levaram a conversar, se beijar e transar eram bem diferentes para os dois, e cabe a você, leitor, decifrá-los. Neste dia de setembro, eu fui concebido. A polícia branca já tinha linchado metade da população procurando por minha mãe, e quando o pastor percebeu este risco, levou-a a cavalo para casa, e disse que ia voltar a vê-la. Morreu no caminho, por uma polícia informada que um negro estava com uma moça branca visivelmente transtornada em cima de um cavalo.

Meu vô pensou que o negro só tinha levado minha mãe a cavalo para casa e pensou consigo que talvez existissem almas boas naquele lado, e lamentou que o tivessem matado por uns 4 segundos. Minha mãe notou que estava grávida dois meses depois, foi até uma clínica recém inaugurada em segredo, e não abortou. No caminho, viu um casal interracial, ela negra, ele branco, passeando, apreensivos, pelo parque. Atraíam inúmeros olhares de desaprovação e asco, mas ninguém falou nada. Ninguém gritou com eles, ninguém os espancou. Minha mãe notou que o mundo, o mundo dela, tinha mudado. Não fui abortado. Virei símbolo na minha cidade, fui a primeira criança mestiça a entrar numa escola de brancos, a primeira criança mestiça a entrar na faculdade da minha pequena cidade, e fui o pastor da primeira igreja mista de Jackson, Mississipi. Não fiz grandes revoluções, elas viriam com ou sem mim nessa cidade. Só me orgulho de ter sido o símbolo delas.

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