quinta-feira, 5 de março de 2009

Saiu no blog do gênio Saramago

Numa conversa, ontem, com Luis Vázquez, amigo dos mais chegados e curador dos meus achaques, falámos do filme de Fernando Meirelles, agora estreado em Madrid, mas a que não pudemos assistir, Pilar e eu, como tencionávamos, porque um súbito resfriamento me obrigou a recolher à cama, ou a guardar o leito, como elegantemente se dizia em tempos não muito distantes. A conversa tinha começado por girar à volta das reacções do público durante a exibição e no final dela, altamente positivas segundo Luis e outras testemunhas fidedignas e merecedoras de todo o crédito que nos fizeram chegar as suas impressões. Passámos depois, naturalmente, a falar do livro e Luis pediu-me que examinássemos a epígrafe que o abre (“Se podes olhar, vê, se podes ver, repara”) porque, em sua opinião, a acção de ver é prevalecente em relação à acção de olhar e, portanto, a referência a esta poderia ser omitida sem prejuízo do sentido da frase. Não pude deixar de lhe dar razão, mas entendi que deveria haver outras razões a considerar, por exemplo, o facto de o processo da visão passar por três tempos, consequentes mas de alguma maneira autónomos, que se podem traduzir assim: pode-se olhar e não ver, pode-se ver e não reparar, consoante o grau de atenção que pusermos em cada uma destas acções. É conhecida a reacção da pessoa que, tendo consultado o seu relógio de pulso, torna a consultá-lo se, nesse mesmo momento, alguém lhe perguntar as horas. Foi então que se fez luz na minha cabeça sobre a origem primeira da famosa epígrafe. Quando eu era pequeno, a palavra reparar, supondo que já a conhecesse, não seria para mim um objecto de primeira necessidade até que um dia um tio meu (creio ter sido aquele Francisco Dinis de quem falei em As pequenas memórias) me chamou a atenção para uma certa maneira de olhar dos touros que quase sempre, comprovei-o depois, é acompanhada por uma certa maneira de erguer a cabeça. Meu tio dizia: “Ele olhou para ti, quando olhou para ti, viu-te, e agora é diferente, é outra coisa, está a reparar”. Foi isto o que contei ao Luis, que imediatamente me deu razão, não tanto, suponho, porque eu o tivesse convencido, mas porque a memória o fez recordar uma situação semelhante. Também um touro que o fitava, também aquele jeito de cabeça, também aquele olhar que não era simplesmente ver, mas reparar. Estávamos finalmente de acordo.

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